Uma breve publicação feita pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, na rede social X, causou alvoroço entre analistas da cena política e econômica do país. “Recomendo este artigo de Bráulio Borges sobre a dinâmica recente das contas públicas”, escreveu Haddad, compartilhando um link para a análise extensa do pesquisador da Fundação Getulio Vargas. A surpresa (positiva, é importante notar) veio porque as conclusões de Borges vão, em grande parte, contra o que o núcleo do governo Lula defende. O artigo argumenta pela necessidade de cortar gastos, critica as flexibilidades do novo arcabouço fiscal e propõe ideias polêmicas, como a revisão das despesas da Previdência. Borges destaca que a Previdência é um grande gargalo brasileiro, com aposentadorias, pensões e outros benefícios consumindo mais da metade do orçamento da União. A outra metade, reduzida a cada ano, deve ser disputada intensamente por todas as outras necessidades, desde salários dos servidores até programas sociais como o Bolsa Família. “O déficit previdenciário já é muito significativo”, resume Murilo Viana, economista especializado em contas públicas.
Entre as propostas de Borges está a sugestão de desvincular o salário mínimo do piso da Previdência e do Benefício de Prestação Continuada (BPC), pagos a idosos e pessoas de baixa renda com deficiência. Desde a Constituição de 1988, esses benefícios seguem o salário mínimo do país. Em tempos de orçamento apertado, essa indexação tornou-se especialmente problemática com o retorno de Lula ao Planalto e sua política de valorização do salário mínimo, que garante aumentos anuais acima da inflação. “A política é importante para melhorar o nível de renda dos trabalhadores, mas, na Previdência, essa fórmula precisa ser discutida”, diz Luiz Eduardo Afonso, professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo.
Cerca de 70% dos 33 milhões de aposentados e pensionistas do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) recebem o piso previdenciário de 1 412 reais, o valor atual do salário mínimo. No BPC, 5,8 milhões de pessoas embolsam a cifra mínima. A conta do governo para 2025 é de que, para cada 1 real a mais no salário mínimo, os gastos com a Previdência e o BPC crescerão 359 milhões de reais. A previsão é que o piso nacional vá para 1 502 reais no ano que vem.
A ministra do Planejamento, Simone Tebet, parece concordar com as proposições de Bráulio Borges. “Vamos ter de fazer isso pela convicção ou pela dor”, disse ela em entrevista ao jornal Valor Econômico, referindo-se à possibilidade de ajustes na Previdência que incluem desvincular os benefícios da variação do salário mínimo. Implementar a medida certamente não seria fácil. O ministro da Previdência, Carlos Lupi, afirmou que nem ele, nem Lula seriam favoráveis à mudança de regras. Alguns especialistas dizem que a proposta pode morrer de morte natural, já que é a própria Constituição que determina o salário mínimo como o piso da Previdência, e esse seria um direito pétreo, ou seja, não pode ser mudado.
O fato é que o debate trouxe a Previdência para o centro dos holofotes, embora a questão dos reajustes seja apenas uma parte do problema. Em 2023, o déficit previdenciário — isto é, quanto o sistema gasta mais do que arrecada — passou pela primeira vez dos 300 bilhões de reais, e isso apenas quatro anos depois da grande reforma, feita com o objetivo de arejar suas contas. O número, porém, considera apenas os aposentados do INSS. Se a folha com os servidores civis e militares inativos também entrar na conta, o rombo supera os 400 bilhões de reais, cerca de 4% do PIB, e os gastos anuais saltam para perto de 1,2 trilhão de reais, 54% de todo o orçamento do ano passado. “Em 1987, isso representava 19% dos gastos”, diz o ex-secretário do Planejamento Raul Velloso. Os investimentos em infraestrutura, por sua vez, saíram de 16% do orçamento federal à época para menos de 2% hoje, de acordo com ele. “Sem investimento, não é à toa que o país não cresce, e a solução passa por mexer na Previdência”, afirma Velloso.
É cada vez maior o coro de analistas que alertam para o fato de que será inevitável fazer uma nova reforma da Previdência — e logo. “A reforma de 2019 foi muito importante, mas deixou de lado questões delicadas que cobrariam seu preço depois”, diz o economista Fabio Giambiagi, um dos principais estudiosos da Previdência no Brasil. Giambiagi lança em junho o livro A Reforma Inacabada: o Futuro da Previdência Social no Brasil, escrito com Paulo Tafner, um dos pais da reforma aprovada em 2019.
Entre os principais pontos que precisarão voltar a ser discutidos estão novos aumentos na idade mínima — atualmente, ela está em 65 anos para homens e 62 para mulheres —, a equiparação dessas idades para os dois grupos e a mesma desvinculação do salário mínimo sugerida por Tebet. Revisar a aposentadoria dos militares, poupados em 2019, e replicar as novas regras para os servidores dos estados e municípios, que acabaram desobrigados na primeira reforma, são outras urgências na fila.
O economista Rogério Nagamine, outro grande pesquisador do tema, alerta ainda para a bomba-relógio dos microempreendedores individuais (MEIs). Criado em 2008 para facilitar a formalização, o regime de tributação especial recolhe de cada MEI 5% do salário mínimo para o INSS. Para ter ideia, a cobrança dos demais contribuintes individuais, aqueles sem vínculo com uma empresa, é de 11% a 20% de seu salário de referência. “Os MEIs já representam 11% do número de contribuintes do INSS, mas são só 1% da receita”, diz Nagamine. “Eles ainda não começaram a se aposentar, mas, em alguns anos, vão gerar um déficit bilionário.”
Todos esses problemas se agravam diante de um fato inexorável da demografia brasileira: o aumento da população de idosos e a redução do número de jovens para contribuir. “A Previdência é um sistema vivo”, diz Paulo Tafner. “Não há uma reforma que será a mãe das reformas e acabou. A Previdência precisa ser ajustada permanentemente.” A questão é os governantes aceitarem a realidade e tomarem coragem para encarar a impopular tarefa de fazer, sem demora, uma nova reforma da Previdência. Os especialistas divergem quanto às medidas a tomar. Mas são unânimes no aviso: se nada for feito, as contas públicas vão entrar em colapso.
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