O Ministério da Saúde está enfrentando uma crise de falta de medicamentos para o tratamento da hanseníase, o que está resultando na impossibilidade de pacientes em todo o país iniciarem ou completarem seus tratamentos. Um documento do ministério, obtido pela Folha, revela que os medicamentos fundamentais para o tratamento inicial da doença, como a poliquimioterapia e a clofazimina, são fornecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e ainda não foram recebidos.
De acordo com informações do ministério, a OMS atribuiu o atraso na entrega dos medicamentos a problemas de produção e logística no transporte marítimo do Oriente Médio. A previsão é que esses produtos sejam recebidos ainda este mês.
Entretanto, o próprio Ministério da Saúde admite no documento que, em relação à clofazimina, os quantitativos recebidos em 2023 já não eram suficientes para atender à demanda da rede, devido ao aumento do consumo.
Entidades destacam que a distribuição irregular dos medicamentos já é uma questão observada desde o início da pandemia de Covid-19 e criticam a falta de elaboração de um plano alternativo eficaz por parte do ministério para lidar com essa situação.
Diante da escassez, o departamento sugere, tanto em documento quanto em comunicação enviada à reportagem, a utilização de um medicamento alternativo chamado ROM (Rifampicina + Ofloxacino + Minociclina), administrado em dose única mensal. A pasta afirma que essa recomendação é respaldada por evidências científicas.
Entretanto, especialistas observam que os medicamentos alternativos propostos para enfrentar a escassez não são eficazes para todos os tipos de hanseníase. Além disso, ressaltam que esses produtos também estão em falta em algumas regiões.
Francisco Faustino Pinto, coordenador nacional do Morhan (Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase), explicou que há estudos científicos apenas sobre a eficácia do tratamento para a forma indeterminada da doença, não sendo aplicável para os outros tipos.
“[A recomendação de remédios de segunda linha] causa mais confusão que qualquer outra coisa. Apesar do discurso de posse da ministra Nísia [Trindade, da Saúde], que prometia destaque e abordagem transversal da hanseníase, observamos reduções orçamentárias e uma falta de avanço nesse sentido”, disse.
Para Marco Andrey Cipriani Frade, presidente da Sociedade Brasileira de Hansenologia e coordenador do Centro de Referência Nacional em Dermatologia Sanitária com ênfase em Hanseniase da USP (Universidade de São Paulo) de Ribeirão Preto, o Ministério da Saúde tem adotado abordagens “simplistas e irresponsáveis”, como a proposta do esquema ROM mensal, sem respaldo científico, além da mera escassez de medicamentos.
“Não tem havido esforços eficazes para assegurar a soberania do Brasil na produção ou aquisição desses e de outros fármacos essenciais para o tratamento da hanseníase”, afirmou Frade.
Os representantes das entidades acrescentam ainda que há um desconhecimento da pasta sobre a realidade local das unidades de saúde porque muitas não possuem também os medicamentos de segunda linha.
Essa escassez de medicamentos está afetando diretamente pacientes como o pintor Jairon Pereira Lima, 38, que aguarda desde fevereiro para iniciar o tratamento em Porto Nacional (TO), após a confirmação da doença.
Lima relata ter feito quatro visitas a uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), sendo sempre informado de que o medicamento ainda não chegou. Ele descreve que a doença já está impactando significativamente sua qualidade de vida, pois sente fortes dores musculares.
“As manchas estão aumentando, e os sintomas da doença são bastante desconfortáveis. Há dias em que não consigo agachar devido à intensa dor muscular. A médica teve que prescrever remédios para aliviar a dor”, diz.
A seriedade da situação é destacada pelo fato de a Sociedade Brasileira de Hansenologia já ter apresentado uma denúncia ao Ministério Público do Rio de Janeiro, com uma audiência agendada para terça-feira (26). Além disso, pacientes também estão buscando assistência em outros estados.
De acordo com os dados do painel de hanseníase do Ministério da Saúde, houve um aumento de 4,8% nos novos casos da doença. Entre janeiro e novembro de 2023, foram registrados 19.129 casos, em comparação com os 18.247 casos no mesmo período do ano anterior.
Os dados da Sociedade Brasileira de Hansenologia indicam que o Brasil é o segundo país com mais casos de hanseníase, ficando atrás apenas da Índia em números absolutos, e concentra mais de 90% dos pacientes diagnosticados nas Américas.
Em junho do ano passado, o governo lançou o Comitê Interministerial para Eliminação da Tuberculose e Outras Doenças Determinadas Socialmente. A meta para a hanseníase é interromper a transmissão em 99% dos municípios, eliminar a doença em 75% das cidades e reduzir em 30% o número de novos casos.
A Dra. Seyna Ueno Rabelo Mendes, especialista em hanseníase e professora universitária, destaca a importância de iniciar o tratamento precocemente para interromper a cadeia de transmissão da doença, que é contagiosa, além de prevenir sequelas graves e neuroimunológicas, que podem resultar em incapacidade física e estigmatização. A hanseníase é uma doença que afeta os nervos, limitando a capacidade da pessoa de realizar atividades diárias.
“Estou com uma paciente que interrompeu o tratamento e está com dor nos membros. Em Porto Nacional, temos cerca de 200 pacientes com hanseníase, entre os que já estão em tratamento e os que precisam iniciar. Mas os medicamentos chegaram apenas para atender seis pessoas”, diz.
O Ministério da Saúde informou que está adotando medidas para prevenir futuros problemas de falta de medicamentos, incluindo a realização de audiências públicas para explorar a viabilidade da produção nacional do medicamento principal. O projeto de desenvolvimento proposto pelo Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco foi o selecionado na chamada pública conjunta do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e do Ministério da Saúde.
“A liberação da primeira parcela do financiamento pela Financiadora de Estudos e Projetos ocorreu em julho de 2023. Contudo, é importante salientar que a implementação de produção de medicamentos constitui-se em um processo complexo e corresponde a uma solução de médio e longo prazo”, disse.
Com informações da Folha de SP